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POLIARGUMENTOS: leitores precisam ter boa vontade para ler textos longos

As coisas de fato não parecem estar nos seus devidos lugares, mas este é o tempo que nos é dado a atravessar. Dito isso, posso apontar o que me motiva a escrever: a má intenção ao interpretar o que se lê, ou a simples incapacidade de entender um texto, isso quando ambos não se sobrepõem, e aí a jornada nos dias que correm torna-se ainda mais penosa. Ao dizer isso penso em um texto que está a circular por blogs, timelines e sites de Porto Velho nos últimos dias. Fundamental destacar que aqui o tema é esta má intenção/incapacidade que campeia entre nós, e nada além disso, ainda que o exemplo surja de uma disputa político-eleitoral em curso.

Um texto assinado por Gomes Oliveira, sob o título “PORTO VELHO: Vinicius Miguel defendeu ‘Poliamor’ em relações íntimas e estáveis com mais de um parceiro” tem circulado em diferentes endereços eletrônicos, às vezes reproduzido na íntegra, outras vezes em trechos – esta uma característica da mídia eletrônica rondoniense. Trata-se de uma tentativa de contraponto ao artigo “‘Amor só dura em liberdade’: aportes para a compreensão jurídica de entidades familiares poliamorosas“, publicado em 2017 por Miguel no site emporiododireito.com.br.

Em seu texto, Oliveira lança mão do verbete poliamor na plataforma coletiva e aberta a contribuições Wikipédia para contrapor esta possibilidade de relacionamento à “[…] Família tradicional [que] é a Pedra Basilar da sociedade, e qualquer menção de destruição dessa base é sim um ataque violento a Tradicional Família de Porto Velho e do Brasil”. Pois bem, a leitura do texto de Miguel mostra que não há qualquer ataque a qualquer outro arranjo familiar, mas a defesa dos direitos dos indivíduos de se relacionarem como julgarem desejável e da necessidade de haver reconhecimento formal por parte do Estado.

Em outro trecho, dispara: “Na era contemporânea, muitos foram os modelos de família que surgiram, entre elas a relacionamento homoafetivo reconhecido, mesmo que ignorado pelas famílias tradicionais, a cultura no desenlace da sabedoria e até, mesmo da ignorância humana, deixa vestígios de outros modelos de família, entre eles o poliamor”. Em que pese o autor ignorar a existência de arranjos afetivos outros que não a monogâmica relação entre homem e mulher ao longo da história humana, de modo que o relacionamento homoafetivo não é um fenômeno da contemporaneidade, há de se destacar que a oposição organizada à formalização de relações afetivas dos mais diversos tipos em nome da “família tradicional”, este sim, é um fenômeno recente e alicerçado numa visão unilateral de mundo, que acaba por alinhar-se a ações violentas como modo de impor suas posições.

A tentativa de crítica deve ser, necessariamente, abordada a partir da leitura do artigo de Miguel. E a leitura atenta do artigo mostra com facilidade que não se trata de uma defesa do poliamor ou, de maneira mais específica, de famílias poliamorosas, mas do direito de seres humanos para que possam reunir-se em arranjos familiares dos mais diversos e que, em função da não discriminação ou, de modo mais simples, sem que devam ser medidos pela régua dos outros. Na conclusão do artigo Miguel cita Maria Berenice Dias, autora do Manual de direto das famílias, assim mesmo, em negrito: “Família é o consórcio humano pautado na afetividade”. Por estar no final do texto, há de se compreender que não ler até este ponto faria esta citação não ser alcançada. Ainda que fosse o caso de ler apenas uma parte do artigo, logo no primeiro parágrafo há um alerta.

Aqui não se pretende afirmar que os relacionamentos poliamorosos devam ser mandamentais e tampouco que atendam às demandas de afetividades, amor e cuidados para todas e todos. Não se acredita, por óbvio, que o modelo em questão deva ser imposto entre indivíduos ou instituído contra vontades particulares, seja por concepções ideológico-religiosas ou sociais”.

Não dá para ser mais claro: não se está a discutir o poliamor, mas a necessidade de que diferentes tipos de relações entre seres humanos sejam reconhecidos formalmente no âmbito do marco legal brasileiro. É isso, e somente isso.

A defesa feita no artigo é pela necessidade de discussão, este um princípio fundamental em qualquer sociedade democrática – ainda somos uma, certo? –, sobre a necessidade de reconhecimento formal pelo Estado dos arranjos familiares poliamorosos. O contrário é que, por certo, não deve ser admitido: a tentativa ou argumentos em prol do silenciamento sumário de qualquer posição contrária. Os argumentos, venham de onde venham, deve ser rebatidos por outros argumentos, e não descartados a priori, como parece querer fazer Gomes de Oliveira ao concluir o seu texto e deixar de lado os argumentos e concentrar-se na figura do autor: “Useiro e Vezeiro em atacar a imprensa e Jornalistas, Vinicius Miguel ou seus teleguiados, sempre tentam tirar a pecha que lhe cabe de esquerdista e socialista, mas sua agenda é recheada de pautas ligadas a partidos de esquerda”.

Ainda há o que avançar para que, pelo menos, os artigos sejam lidos da íntegra e, se lidos, sejam compreendidos, e, se compreendidos, não se escamoteie o que dizem para lacrar, com pretensões de erudição. Necessitamos urgentemente de um chamamento à atenção à leitura – e de se alcançar a capacidade de interpretação textual – e à honestidade intelectual!

 

Sandro Colferai é professor de Jornalismo e coordenador do COMtatos na Universidade Federal de Rondônia (UNIR).

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